quinta-feira, 30 de novembro de 2017

As razões do fracasso de Bielsa no Lille

Embora ainda esteja cercado de mistérios, tudo nos leva a crer que o casamento entre Lille e Marcelo Bielsa acabou. A enigmática "suspensão temporária" do treinador pelo clube francês talvez nunca seja explicada e as especulações neste momento de pouco nos ajudam. Fato é que se o time estivesse bem na tabela dificilmente os desentendimentos gerariam demissão, desquite ou qualquer coisa do tipo.

O que nos cabe aqui é tentar contextualizar e analisar o porquê de as coisas não terem caminhado como o esperado.  Vamos lá:

O projeto

O início do projeto do Lille começa com o desejo do empresário hispano-luxemburguês Gerard López de adquirir um clube de futebol na França. López que foi dono da equipe Lotus de Fórmula-1 escolheu o Lille e em janeiro de 2017 se tornou o novo proprietário do clube. O empresário, no entanto, não estava sozinho nessa: ao lado dele se encontravam o ex-treinador e professor de educação física Luis Campos, que funcionava como uma espécie de conselheiro esportivo, e Marc Ingla, que foi vice-presidente de marketing do Barcelona entre 2003 e 2007.

No que se refere ao futebol, López queria um estilo atraente e ofensivo de jogar, com atletas jovens e com potencial de revenda. Por isso, Marcelo Bielsa, amigo pessoal de Gerard López, foi cotado como primeiro nome da lista de treinadores desde o início. Houve o acerto, mas apenas para a temporada 2017-18, o que fez com que  Franck Passi, ex-auxiliar do argentino no Marseille, tocasse o Lille de fevereiro até o fim daquele campeonato. O time do Norte da França foi o 11º colocado e a expectativa para a nova temporada era de desempenhos melhores, com o clube lutando, quem sabe, por uma vaga na próxima Liga Europa ao menos.  

As chegadas e saídas

Com dinheiro para investir, Gerard López foi às compras na janela de transferências. Os alvos? Jogadores jovens observados e indicados em conjunto por Luis Campos, conselheiro esportivo do presidente, e Marcelo Bielsa. Ficou famosa inclusive a coletiva de Bielsa na qual ele disse ter analisado 15 partidas de 120 jogadores a fim de conformar o plantel do Lille para a nova temporada. Por meio desse trabalho chegaram:

- O goleiro Hervé Koffi, de 21 anos
- O goleiro Adam Jakubech, de 20 anos 
- O zagueiro português Edgar Ié, de 23 anos 
- O lateral-direito Kevin Malcuit, de 26 anos
- O lateral-esquerdo Fode Ballo-Touré, de 20 anos
- O volante Thiago Maia, de 20 anos
- O volante Thiago Mendes, de 25 anos
- O volante Soumaré, de 18 anos
- O atacante Nicolás Pepe, de 22 anos
- O atacante Luiz Araújo, de 21 anos
- O atacante Ezequiel Ponce, de 20 anos

Foram 11 chegadas de novos jogadores para o elenco principal, enquanto 11 atletas foram afastados por Marcelo Bielsa por não se enquadrarem no estilo de jogo que ele imaginava para o novo Lille: time intenso, veloz, com atacantes dribladores pelo lado, criadores pelo meio e atletas capazes de marcar individualmente por grandes períodos. Deixaram o clube:

- O goleiro Vincent Eneyeama, de 35 anos
- Os zagueiro Marko Baša, de 34 anos, e Stoppila Sunzu, de 28 anos 
- Os meio-campistas Palmieri, de 30 anos, Rio Mavuba, de 33 anos, Marvin Martin, de 29 anos, Éric Bauthéac, de 30 anos e Naim Sliti, de 25 anos
- Os atacantes Éder, de 29 anos, Junior Tallo, de 24 anos e Nangis, de 23 anos

Além desses, também foram negociados, em um misto de falta de vontade de mantê-los e necessidade de recursos financeiros para equilibrar o caixa, os seguintes atletas:

- O meia Xeka, de 23 anos, o lateral-direito Corchia, de 27 anos, e o atacante Nicolás De Preville, de 26 anos. 

Com as chegadas e saídas o Lille se tornou dono do elenco mais jovem das cinco ligas mais importantes da Europa:


Ou seja... Em linhas gerais, Bielsa rejuvenesceu o grupo com atletas de potencial muito maior do que os que lá estavam, mas que tinham um desafio gigante: chegar e jogar. 

Além de Luiz Araújo, Thiago Mendes e Thiago Maia estarem no primeiro ano de futebol europeu, Ballo-Touré veio do Paris St. Germain B, Edgar Ié estreava na liga francesa após passagem pela Espanha e Portugal e Ezequiel Ponce também tinha a primeira chance no país depois de trajetória apagada na Roma e no Granada.


O time inicial e o grupo de trabalho

Não bastassem as profundas mexidas no elenco e inexperiência no futebol francês dos recém-chegados, os remanescentes também teriam que se provar como titulares, já que a maioria foi banco no ano anterior. Logo na pré-temporada o time base foi mais ou menos definido da seguinte forma em um misto de 3-3-3-1 e 4-2-3-1:


Maignan
 (goleiro de 22 anos com 12 partidas na temporada 16-17)

Ié 
 (23, recém-chegado)   Amadou  (24, 41J em 16-17)   Alonso (24, 18J em 16-17)

Malcuit (26, recém-chegado)Thiago Mendes (25, recém-chegado) e Kouamé (20, veio do Lille B)


Benzia (23, 29 J em 16-17)

El Ghazi (22, 13 J em 16-17)    De Preville (26, 33 J em 16-17)  e Luiz Araújo (21, recém-chegado) 

No banco, a situação também não era muito diferente.  Entre os que mais entraram no time estavam:

- Ballo-Touré, 20 anos e recém-chegado
- Yves Bissouma, 21 anos e com 27 partidas na temporada anterior
- Faraj, 18 anos, recém-promovido
- Bahlouli, 22 anos e com cinco jogos na temporada anterior
-  Ponce, 20 anos e recém-chegado


Bom, com esse grupo, tendo De Preville, posteriormente negociado, o Lille obteve três vitórias, um empate e uma derrota (para a Atalanta) na pré-temporada. O time mostrou bom futebol em quase todas as partidas e por isso a confiança estava em alta para o Francês. 

Jogo a jogo: o que houve? 
(com vídeos do @pizarrabielsa)

- O primeiro jogo da temporada foi um delírio coletivo.  Escalado com Maignan; Ié, Amadou, Alonso;  Malcuit, Thiago Mendes e Ballo-Touré;  El-Ghazi, Benzia e Luiz Araújo; De Preville  o Lille fez 3 a 0 no Nantes de Cláudio Ranieri, com gols de Alonso, De Preville e El-Ghazi. O time ganhou a primeira página dos portais pelo grande futebol apresentado e Bielsa foi eleito o melhor técnico da rodada. Havia a expectativa por dias ainda melhores e bem....  Isso não ocorreu.

- Na segunda rodada o Lille pegou o modesto Strasbourg fora de casa. Aos 12 minutos Thiago Mendes se lesionou e teve que ser substituído por Bissouma, enquanto aos 19 minutos Malcuit, também lesionado, deu lugar a Thiago Maia.  O Strasbourg jogava melhor, principalmente pela direita do ataque, dando pesadelos para Ballo-Touré, que já tinha cartão amarelo. Bielsa então foi ousado: tirou o lateral ainda no primeiro tempo e colocou Kouamé, tendo feito as três substituições em 45 minutos de jogo. 

O zero permanecia no placar, mas aos 18 minutos do tempo complementar veio o duro golpe na ousadia do treinador: de maneira bem estúpida, o goleiro Mike Maignan atirou a bola na cabeça do atacante Strasbourg e foi expulso de forma direta.  Com um a menos e sem mais substituições, Bielsa mandou o atacante De Preville para o gol.  Ele até ia bem, mas aos 29 minutos um escanteio gerou o 1 a 0 para o Strasbourg. Precisando ir ao ataque, De Preville voltou para a dele como centroavante, enquanto Amadou foi para o gol. O Strasbourg fez mais dois e o Lille perdeu por 3 a 0.

- Na terceira rodada contra o Caen, um Lille, sem Thiago Mendes e Malcuit, foi muito mal e perdeu a segunda seguida: 2 a 0 para o adversário.

- Na quarta rodada, com o Angers, fora de casa, o desempenho foi ligeiramente melhor, mas depois de sair atrás no placar, o Lille foi buscar o empate com De Preville: 1 a 1. Foi o último gol do atacante com a camisa do clube, já que ele foi negociado com o Bordeaux no fechamento da janela de transferências. Ninguém veio para o lugar dele, o que provocou a instalação de Nicolás Pepe como novo comandante de ataque.

- Na quinta rodada, o adversário foi o Bordeaux, o time mais forte enfrentado pelo Lille até aquele momento. Thiago Maia, escalado como lateral-esquerdo, tomou dois amarelos em 32 minutos e foi expulso. Com um a menos, o Lille só se defendeu e até ficou feliz com o 0 a 0 ao apito final.

- Na sexta rodada, ainda sem Thiago Mendes, mas já com Malcuit, o Lille fez uma partida equilibrada e de poucas chances contra o Guigamp. O jogo caminhava para mais um 0 a 0, quando aos 47 minutos do segundo tempo Didot deu a vitória ao Guigamp em finalização desviada por Amadou no meio do caminho. Uma mostra de um entendimento do modelo de jogo veio nesse lance, por exemplo:

- Na sétima rodada, o Lille, com Thiago Mendes no banco, recebeu o poderoso Monaco, que nem sequer tomou conhecimento dos comandados de Bielsa:  4 a 0. A se destacar alguns bons momentos de construção ofensiva, como esse:
- Na oitava rodada o Lille viajou para pegar o Amiens e abriu o marcador antes dos 20 minutos, com Ballo-Touré. A queda da arquibancada onde estavam os fãs dos Dogues, no entanto, paralisou o jogo e a partida foi cancelada sem o resultado definido. 

- Na nona rodada o Lille fez diante do Troyes uma partida do nível daquela contra o Nantes, ou até melhor! Isso depois de sair atrás no placar aos 3 minutos de jogo. Subindo a ladeira, o time de Bielsa, empatou aos 12 minutos com Luiz Araújo

.....e virou o placar aos 29 do tempo complementar, com Thiago Mendes. 



A vitória parecia garantida, mas aos 47 do segundo tempo - de novo - o Lille cometeu um pênalti e o Troyes igualou por 2 a 2.

- Na décima rodada, um gol do Stade Rennais aos seis minutos de jogo condicionou o Lille a buscar mais um resultado e a equipe voltou a atuar muito mal. O 1 a 0 permaneceu e Bielsa e seus comandados entraram na zona de rebaixamento. 

- Quatro dias depois o Lille voltou a campo para estrear na Copa da Liga da França. Diante do Vallenciennes da segunda divisão a equipe fez uma partida de mediana para boa e desta vez abriu o placar! O adversário, no entanto, empatou.  Thiago Mendes recolocou o time em vantagem, mas - outra vez - um pênalti no último lance do jogo determinou a igualdade do Vallenciennes. A partida foi para a decisão por pênaltis e o Lille avançou.

- Na décima primeira rodada o adversário dos Dogues foi o Olympique de Marseille, justamente o ex-clube de Marcelo Bielsa. Aos cinco minutos de jogo, bola parada pra área e Sanson faz o 1 a 0 para o Marseille. O Lille mais uma vez passa uma partida buscando o empate. O jogo é bom, mas o gol não vem e os Dogues perdem de novo. 

- Na décima segunda rodada do Francês, o Lille enfrenta o lanterna Metz e enfim consegue a segunda vitória no campeonato. Pepé, duas vezes, e Bahlouli fazem os gols do time em uma partida de mediana para boa.

- Na rodada seguinte a reação segue: 3 a 1 contra o St. Etienne, com partida mediana e gols de Pepé, Thiago Mendes e Ponce. O Lille respira fora da zona de rebaixamento, mas acaba voltando pela combinação de resultados.

- Três dias depois a partida contra o Amiens é retomada, mas não com o 1 a 0 a favor dos Dogues que estava no placar na hora da suspensão e sim com um 0 a 0. Os dois times faziam um jogo equilibrado até que aos 36 minutos o Amiens abriu o placar. De novo o Lille teria que buscar um resultado.... De novo o time não conseguiu, perdendo por 3 a 0. Foi o último jogo de Bielsa comandando os Dogues.

Os erros

De uma maneira geral os erros do Lille sob o comando de Marcelo Bielsa foram erros de execução do modelo de jogo. Como visto nos vídeos acima, a equipe sabia o que fazer com a bola, se movimentava nesse sentido, mas quase sempre pecava na escolha do último passe ou na hora de finalizar para gol.

Já na hora de defender os atletas entendiam que deveriam fazer a marcação individual e não largar do adversário na fase defensiva, mas muitas e muitas vezes ou perdiam os duelos com os atacantes rivais ou se desligavam do jogo.

Pior: como o time saiu em desvantagem no placar em nove dos quinze jogos feitos com Bielsa - sofrendo gols nos primeiros SEIS minutos contra Caen, Troyes, Rennais, Marseille - os Dogues quase sempre tinham que quebrar defesas postadas muito atrás, já que após abrir o placar ninguém queria mais sair para o jogo. Isso resultou em um Lille que tinha uma das maiores posses de bola da Europa, mas que, por conta das dificuldades e erros no terço final, tinha pouquíssimas finalizações de qualidade e gols. 

Quando ainda conseguia se manter em igualdade ou em vantagem no placar, gols nos acréscimos vitimaram a equipe contra Guingamp, Troyes e Valenciennes...

Em suma: sistema de marcação deficitário, posse de bola inócua e vantagens cedidas ou nos primeiros ou nos últimos minutos de cada jogo. Dá pra notar como a zona de rebaixamento é justa para esse time. 

As causas


Primeiramente, há que se esclarecer o seguinte: Bielsa não muda e não se adapta. É sua maior qualidade e seu maior defeito. Por isso não há como debatermos se o técnico argentino poderia ou deveria adotar um estilo de jogo diferente, uma marcação por zona ou uma ideia mais pragmática de bola. Ele não o faria e não fará.

Ponto dois: se os atletas não executaram bem o modelo de jogo, os treinos foram ruins?  Pode ser, mas é difícil de acreditar. Na Argentina, no Chile, no Bilbao e no Marseille as ideias e os métodos de treinamento foram sempre os mesmos e com bons resultados de uma maneira geral. No Lille, El Loco repetiu isso, mas não obteve os êxitos de outrora. Vale ainda dizer que na pré-temporada a equipe foi bem e que a estreia contra o Nantes mostrou um time muito perto do imaginado.

Por tudo isso, a questão fica sobre os jogadores e as escolhas do treinador. Vale dizer que Bielsa referendou TODAS as contratações, ou pelo menos disse isso, então não estamos aqui para tirar a responsabilidade dele. Pelo contrário, a responsabilidade é toda dele de achar que atletas jovens, atletas recém-chegados e reservas do time da temporada passada poderiam fazer exatamente o que ele queria em alto nível. Por mais que os treinos fossem bons e Bielsa tenha se notabilizado por melhorar muitos jogadores, achar que Luiz Araújo estaria pronto para decidir no terço final no futebol europeu, que Benzia - atacante a carreira inteira - poderia ser camisa 10 de uma hora para outra e que o jovem Ballo-Touré sairia do time B do Paris St. Germain para ser titular absoluto do time é trabalhar com uma margem de erro gigantesca.

Da mesma maneira, escalar Thiago Maia como lateral-esquerdo (embora possamos entender que as áreas centrais estivessem com Amadou, Mendes e Benzia) e Pepe como centroavante é apostar demais em adaptações rápidas de jogadores jovens.

Com as derrotas a confiança cai, principalmente no grupo mais jovem das cinco principais ligas da Europa e não ter nenhum jogador já comprovado na carreira atrapalhou a remota possibilidade de alguém carregar o time nas costas em momentos difíceis. Talvez isso explique em parte porque tantos gols sofridos no começo e no final das partidas, mas esse é um chute no escuro...

De Preville, 26 anos e artilheiro do time, poderia ser esse cara, mas a diretoria o negociou com o Bordeaux na quinta rodada em condições bem estranhas; alegaram que o clube precisava de dinheiro, mas isso depois de gastos exorbitantes com Mendes, Maia e cia.  Thiago Mendes, aliás, foi o melhor jogador do período Bielsa, e o time teve seus piores jogos sem ele e Malcuit, outro atleta um pouco mais experiente.

A demissão e o climão

Se por um lado a demissão de Marcelo Bielsa não pode ser considerada injusta, por outro há que se ponderar se os motivos foram meramente esportivos. A história de que Bielsa viajou para a Argentina para ver o amigo que estava morrendo não se confirmou e por isso a versão mais aceita é de que houve um grande desentendimento de Bielsa com Luis Campos, consultor esportivo do dono do clube, Gerard López.  Campos já foi treinador e teria uma série de divergências com Bielsa em relação às escolhas de esquema tático, sistema de jogo e posicionamento de jogadores. Ou seja: briga de egos e vitória do homem mais próximo do presidente.

Como dito, essa não é uma versão confirmada, mas o fato de que João Sacramento, contratado antes da chegada de Bielsa e dispensado de suas funções pelo argentino no início da temporada, tenha se tornado um dos integrantes do corpo técnico temporário pode reforçar essa tese.

Teorias à parte, o Lille poderia ter insistido um pouco mais com Bielsa. Talvez dar a ele ao menos seis meses de competições, ou reforços mais parrudos na janela de janeiro. Digo isso não por consideração pessoal, mas sim porque o próximo treinador vai ter que assumir um grupo montado por Bielsa e para Bielsa com um estilo de jogo provavelmente bem distinto.  

Um comentário:

  1. Gabriel, parabéns pelo seu texto!
    Uma dúvida que tenho faz tempo:qual a tara de Bielsa com marcação individual? Qual vantagem ele vê nesse sistema?

    Abraço!

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